22 junho 2010

A ideologia é má leitora (II)

Esses dias, na internet, vi uma citação de texto bíblico assim:

“Observe a formiga, (...) reflita nos caminhos dela e seja sábio! Ela não tem chefe, nem supervisor, nem governante” (Provérbios 6.6-7).

Como eu podia responder ao autor da postagem, assim o fiz:

Olá, X, tudo bom?

Desculpe, não pude deixar de comentar: você citou o texto bíblico pela metade. O correto é:

6 Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio.
7 Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante,
8 no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento.

Isso muda totalmente o sentido da sua postagem. No trecho completo, a formiga é louvada por trabalhar duro mesmo sem a pressão de uma autoridade sobre ela. Há muita gente que só trabalha sob pressão (é o caso do preguiçoso). O que está em questão, aqui, é a iniciativa da formiga no labor, não a autoridade em si. Na sua citação incompleta, parece que a Bíblia endossa a ausência de autoridade sobre nós, o que não é verdade, pois contradiria várias passagens que falam da importância da obediência, às autoridades não só espirituais, mas seculares também. Não só Romanos 13 (cuja leitura do anarquista Jacques Ellul carece, a meu ver, de fundamento), mas da ideia geral de autoridade, presente em toda a Escritura. De acordo com a Bíblia, a autoridade não é negativizada - pois isso colocaria em cheque a autoridade do próprio Deus, em primeiro lugar, e, em segundo a autoridade dos pastores, do governo etc. - , mas sim colocada em seu devido lugar. Enquanto a autoridade de Deus é absoluta (sendo o próprio Deus infinitamente superior aos seres humanos, chamado pela Palavra de Criador, Pai, Rei etc.), a dos homens é relativa e funcional, não ontológica. Não nos cabe ensinar a ausência de autoridade como um ideal, mas sim questionar suas práticas, quando são absolutizadas (com a vontade do líder equiparando-se à vontade de Deus, como ocorre nos regimes totalitários) e quando há abusos (com a quebra do princípio da liberdade de consciência).

O autor da postagem discordou polidamente, afirmando que conhecia meu blog e que de fato se sentia mais afinado com o pensamento de Jacques Ellul. Antes mesmo de ler sua resposta, eu já sabia dessa afinidade e conhecia o livro (tendo traduzido Anarquia e cristianismo para a Editora Garimpo). Essa obra de Ellul é interessantíssima: em alguns momentos, sua defesa da liberdade se assemelha muito à luta dos conservadores, quando sugere ações efetivas para a oposição aos abusos de poder. Gostei muito desse aspecto. Apreciei também sua crítica ao socialismo e ao santo pop Gandhi, que teria recorrido à não-violência somente “para instalar na Índia o poder opressor do Estado”. No entanto, é na teologia que a coisa “pega”: sua leitura da Biblia, principalmente de Romanos 13, é bastante controversa. De modo reiterado em todo o livro, chega a negar o senhorio divino, enfatizando demais o que concorda em chamar de “humanidade de Deus”. Apresenta ao leitor uma explicação confusa para suas posições, demonstrando uma apreensão fragmentária e seletiva da Bíblia com o objetivo de negativizar por completo toda noção de autoridade, terrena ou espiritual. Não preciso citá-lo, a obra fala por si.

Quanto a mim, creio que a Bíblia nos mostra que Deus é ao mesmo tempo, e em igual medida, Pai (que ama seus filhos e se relaciona intimamente com eles) e Criador (que pode dispor de suas criaturas como bem lhe aprouver, pois tudo lhe pertence). Como filhos, amamos o Pai, mas como criaturas tememos, pois conhecemos seu poder. Isso pode parecer um tanto esquizofrênico à primeira vista, mas é impossível dissociar o Pai do Criador, a não ser se negamos a soberania e o senhorio de Deus para nos sentir mais confortáveis ou para justificar alguma ideologia com a qual nos identificamos. Acredito ser este o caso de Ellul em relação à anarquia, assim como é o caso dos esquerdistas em relação ao socialismo ou ao comunismo. Porém, o único que pode nos confortar e nos fazer sentir seguros em relação ao Deus Todo-Poderoso é Jesus Cristo, que nos apresenta santos e imaculados perante o Pai. Nenhuma ideologia é capaz de fazer isso: vencer o pecado. Nem para romper as barreiras entre nós e Deus, nem para nos regenerar, pois a resposta para o poder abusivo (nosso e dos outros – aliás, por que será que o anarquista nunca pensa no próprio eventual abuso de poder?) está, novamente, em Cristo. Além disso, se o senhorio divino não existe, estamos entregues a nossa sorte – algo que, a exemplo do post anterior, invalida o plano da salvação.

Agora, enquanto escrevo, outro aspecto da citação mencionada acima me salta aos olhos: o termo “preguiçoso” é retirado. Por que será? Uso politicamente correto das palavras? Pode ser, mas não só: o destinatário do texto bíblico original, sob a forma de vocativo, é de fato o preguiçoso, para que, observando o exemplo das formigas (que trabalham mesmo sem chefe!), possa se arrepender e mudar. Sem o “ó preguiçoso”, a citação se transforma, aplicando-se a todos os leitores; mutilada, vira uma regra geral – no caso, uma regra geral anarquista. Isso é manipulação textual, espelho de mais um exemplo de leitura encampada pela ideologia.

14 junho 2010

Transferência de poder (II)

Por trás das palavras do artigo de Gondim eu consigo entrever um processo parecido com o descrito por Lytta Basset (parte 1), algo que certamente ocorre com todo aquele que se deixa mergulhar na cosmovisão esquerdista para explicar (reinventar) a teologia cristã. Todos nós já tivemos ou alimentamos uma culpa difusa; no entanto, parece-me que o esquerdismo é essencialmente manipulador desse sentimento. Assim, os esquerdistas cristãos embarcariam nesse mecanismo de controle da seguinte maneira: diante da angústia por essa culpa difusa à qual não conseguem associar uma razão específica, aplicam uma “capa”, uma falsa concretização, sob a forma do problema da pobreza: tenho culpa por não participar da miséria do mundo. (Não é por acaso que o esquerdismo alcança sobretudo os mais abastados da sociedade. Escaparam da miséria por motivos desconhecidos, que logo assumem como metafisicamente aleatórios; precisam ter deixado de repousar na sabedoria divina para valerem-se dessa compensação autopunitiva.) O mecanismo cobra seu preço: iniciando-se em uma “gambiarra afetiva” (preciso conhecer minha culpa) e na ausência de convicção quanto à soberania divina (eu não devia gozar de privilégio algum), essa precária solução toma o lugar do próprio núcleo da fé cristã, moldando o restante, irradiando suas conclusões para toda a teologia. Tudo porque se prefere controlar os sentidos da fé com falsas afirmações a render-se ao Deus soberano, que tanto faz chover sobre bons e maus quanto atinge com tragédias até os seus queridos. Desse Deus, que é o Deus da Bíblia, nem sempre saberemos os motivos, mas podemos contar com sua bondade para que todo mal resulte em bem certeza que somente a cruz pode dar, já que Cristo foi o homem mais amado por Deus que já passou por esta terra, mas também foi Seu maior afligido (Mc 10.45), não tendo culpa alguma, nem real, nem imaginária (Hb 7.26). Deus não poupou Seu próprio Filho, mas O entregou — em meio a grande sofrimento — para que tivéssemos vida. Eis a resposta suprema para o problema do mal no mundo, a única (e suficiente!) que o cristão tem a dar.

Mas voltemos ao artigo. Essa frase de Gondim é reveladora:

Não consigo imaginar-me falando: “Deus é soberano e decidiu que eles viveriam assim; e os porquês da Providência, só saberemos na eternidade”.

Imagino que não consiga porque prefere uma fé que possa controlar, uma culpa à qual possa atribuir um sentido unicamente humano, abordável imediatamente pela razão (e nisso Gondim seria talvez um “neorracionalista”), cujas causas possam ser minadas com as próprias obras, ainda que apenas no plano mental. Em reação às manifestações mais terríveis das desordens da natureza e da maldade humana, é claro que o cristão sofre, mas não se inquieta com causas transcendentes à parte do próprio pecado original, nem com falsos méritos atribuídos ao homem: em primeiro lugar, aprendeu a confiar nas palavras de Jesus quanto a pensar no para quê do mal, e não no porquê (Jo 9.1-3); em segundo, vai a Jesus para “alívio” de todo mal (Mt 11.28); em terceiro, sabendo que a resposta definitiva para o mal já está dada (Hb 9.26, 1Pe 1.20) no sacrifício de Cristo, faz tudo o que estiver a seu alcance para minorar o sofrimento alheio, com a graça de Deus, esperando pacientemente pela redenção final de toda a criação (Rm 8.18-25), quando o mal já não existirá em nenhuma de suas formas (Ap 21.4). Já quem se vale do mecanismo de apaziguamento de culpas prefere voltar as costas para o desconhecido (abrigado em Deus) quanto às razões específicas para determinado mal, carregando o peso de suas mazelas, concentrando-se em si somente. Quando um esquerdista vocifera contra a teologia tradicional com todo aquele ódio e aquela indignação que o caracterizam, como quem brada “Como vocês podem ficar aí, tranquilos, enquanto há tanta pobreza no mundo?” (não que de fato fiquemos tranquilos, mas, não esqueçamos, ele colocou todo o peso sobre si mesmo, logo nos vê como os “descansados” — e de fato o somos, não em nossas ações, pois há muitos cristãos conservadores que evangelizam o perdido e agem pelo pobre, mas interiormente), acredito que o faz sobretudo do alto de sua cátedra de culpa irresolvida: a culpa fundamental, ampla, do pecado original, que, inconfessada, não foi depositada aos pés de Cristo para o perdão, mas sim reduzida a uma culpa pelos “males sociais” para que esteja ao alcance da utopia socialista, que promete “um dia” acabar com ela de modos bem concretos. Claro, isso não significa que o cristão esteja isento dessa culpa difusa, mas fará muitíssimo bem se não utilizar a ideologia para lhe atribuir um nome. Deus nos livra pouco a pouco, em nossa caminhada cristã, de nossas falsas culpas, ajudando-nos a nos conhecer mais acuradamente, se depositamos nele toda confiança quanto a esses processos.

Porém, se o cristão não abre mão do controle sobre seus abismos, não há descanso possível em Cristo. O que resulta disso é um pseudocristianismo, quando aquele que se sente culpado (sem confessá-lo) precisa militar incessantemente para convencer-se de que o ser humano tem em mãos o sentido da história, acreditando ter transferido o poder de Deus para si — como se isso fosse algo bom, quando não passa de um retorno às eras pré-cristãs, um paganismo revisitado. E não há nada mais triste que valer-se de um deus inventado para confirmar logros interiores.

10 junho 2010

Transferência de poder (I)

A leitura desse artigo de Ricardo Gondim suscitou algumas reflexões. Vou compartilhá-las com vocês em mais de um post, deixando de lado os três primeiros parágrafos (que me parecem autolaudatórios ao gosto pós-moderno: “vejam como eu não tenho medo de mudar” e “vejam como eu não tenho medo da crítica”) e concentrando-me no restante do texto.

Um tanto acusadoramente, Gondim parece esboçar através de um formato negativo (a rejeição, expressa através do futuro do pretérito) o que ele crê ser o Deus da teologia tradicional — uma imagem feia e simplista como uma caricatura. Nessa caricatura gondiniana, a ira de Deus se manifesta sobretudo na miséria econômica (os que “vivem em monturos de lixo”, os “miseráveis do Haiti”). Há menções a algumas tragédias (estupro, assassinato), mas é a miséria que abre e fecha a descrição dos males do mundo que compõe a parte principal do artigo (o trecho em itálico). Isso é espantoso: todos os demais pecados estão ausentes do quadro. Altivez, vícios, cobiça, ira, ingratidão, lascívia, autoindulgência, angústias interiores, famílias destruídas, nada disso entra na conta dos frutos gondinianos do pecado; os males que costuma nomear são sobretudo os que afetam os pobres (como, em outras ocasiões, o tsunami).

Os prolongamentos lógicos de suas vindicações são: nesse mundo injusto, em que os pobres são alvo preferencial dos males do mundo e vítimas por excelência (quase diria: bons, em contraposição aos abastados maus), não é possível que Deus seja soberano, ordenando ou permitindo tudo isso. É quando o dedo acusador se faz presente: o Deus dos cristãos conservadores e fundamentalistas odeia especialmente o pobre. Logo, é preciso outro Deus...

Isso tem nome e se chama esquerdismo. Ao contrário do que Gondim quer fazer parecer, é velho como o diabo e nada inovador. Desde Marx, a estrutura do cristianismo (criação, queda, redenção) é assumida e reproduzida sob moldes materialistas. Por isso, muitos consideram acertadamente o marxismo como uma “heresia religiosa” (cf. Nancy Pearcey, Verdade absoluta, Rio de Janeiro, CPAD, p. 153 a 156), com sua própria versão de criação (em vez do Deus criador, a matéria, que é autocriada), queda (em vez do pecado original, o surgimento da propriedade privada) e redenção (em vez do sacrifício de Cristo, a revolução socialista). Assumir a cosmovisão de esquerda e encaixá-la em uma estrutura cristã equivale a absorver concepções bíblicas mutadas, sendo a principal delas a transformação do tratamento teológico do mal em um mecanismo simplista: primeiro, a redução do mal a tragédias visíveis, materiais; em seguida, o maniqueísmo que enxerga o pobre como vítima e o rico (na verdade, só o rico conservador, pois o rico esquerdista está “redimido”) como carrasco, sem cores intermediárias possíveis.

Mas outra coisa me vem à mente. Na Enciclopédia do protestantismo (a sair pela editora Hagnos) há um verbete enorme chamado Culpa, de Lytta Basset. Em uma interpretação do Livro de Jó, a autora observa que, inconscientemente, quando consumidas por uma culpa que não conseguem explicar, as pessoas preferem rejeitar essa culpa desprovida de uma causa específica, trocando-a por uma culpa com causa, qualquer que seja ela, com a exclusiva finalidade de tomar para si as rédeas da situação e enxergar uma solução mais próxima. Esse teria sido um dos problemas dos amigos de Jó, que, angustiados pela situação dele, buscaram aliviar seu fardo tentando convencê-lo de que havia algum pecado oculto em sua vida, bastando-lhe confessá-lo. O estratagema recebeu a desaprovação de Deus, pois o mal que afligiu Jó tinha uma finalidade precisa (um conhecimento mais acurado de Deus, cf. Jó 42.2-6), mas não uma causa definida. Isso está em estreita correlação com a questão do controle: em vez de centrar-se no mérito humano (Jó era justo e não “merecia” aquilo tudo), o Livro de Jó é o grande manifesto do poder e da liberdade de Deus, que parece exclamar: “Assim como minha graça não corresponde à bondade humana, o mal que faço sobrevir à humanidade também não corresponde necessariamente à maldade humana.”

A autonomia divina passa totalmente despercebida por Gondim, que diminui Deus à exclusiva posição de criador e, em seguida, mero espectador, tal como os deístas o fizeram séculos antes (e coerentemente a maioria deles abandonou por completo o cristianismo após algum tempo). Mas esse Deus “esvaziado” não é o Deus da Bíblia. Enquanto Gondim chega à conclusão de que Deus teria renunciado voluntariamente a seu senhorio, entregando o mundo a seu próprio mal, Jó exclama: “Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42.2). E não precisamos nos limitar a Jó: o próprio Jesus nos assegura de que nada pode nos sobrevir fora da vontade divina, nem mesmo o mais ínfimo acontecimento: “até os cabelos todos da cabeça estão contados” (Mt 10.30). Tanto a edificação quanto a destruição estão debaixo do senhorio de Cristo, e nisso reside a centralidade da Palavra, de Gênesis a Apocalipse, além de nosso consolo maior: o sentido da vida e da história está em Deus. Deslocar essa verdade é adulterar toda a fé. Explico: se Deus não é livre para responder o bem com o mal, segundo seus propósitos inescrutáveis, também não é livre para responder o mal com o bem, pois está preso às ações humanas (de fato, esse seria o Deus das religiões reencarnacionistas, não o Deus cristão); logo, a graça redentora que nos resgata do pecado também não é possível. Se o mal resulta de nossos atos em vez de ser parte dos propósitos de Deus, não há perdão para os homens, nunca houve.

Mas, se Basset está correta quanto à culpa autoengendrada para fins de controle das angústias existenciais, que profunda culpa seria essa, capaz de mutilar do cristianismo seu próprio cerne, a saber, o perdão divino? (continua na parte II)