25 outubro 2008

Seis primeiras notas sobre Ortodoxia, Chesterton


1 Fiz a besteira de tomar açaí lendo Ortodoxia em uma lanchonete. Descobri que são duas coisas a serem evitadas em público: açaí deixa a boca e os dentes pretos, enquanto Ortodoxia provoca gargalhadas. As duas, juntas, são um verdadeiro fiasco.

2 Mas nada, no livro, é humor puro. Ler essa obra de Chesterton é como estar na companhia de um divertidíssimo amigo que alterna brincadeira com coisa séria, sem muitas firulas na passagem de uma à outra. Logo nas primeiras páginas, depois de rir bastante, posso sentir como libertadora a crítica chestertoniana ao materialista, bem como ao subjetivista, como dois lados da mesma prisão do pensamento moderno: um fechamento digno de hospício. Além de deliciosamente ilustrada, tal crítica tem o poder de prevenir muitos nós mentais fatalmente adquiridos durante a graduação de qualquer curso de ciências humanas. E isso, só para começar.

3 A condição humana, Hannah Arendt, também ajuda no mesmo sentido preventivo, embora, filosófico e doído em vez de divertido, seja muito mais teórico e pontual, concentrando-se na origem do trambolhão reducionista que desembocou tanto no materialismo quanto no subjetivismo: René Descartes. Ainda pretendo estudá-lo direito, lendo as Meditações e tudo o mais.

4 Percebo-me um tanto penalizada com relação aos católicos que leram Calvino via Chesterton. Não me entendam mal, Chesterton é um gênio; embora eu esteja apenas no início de Ortodoxia, já o considero um dos livros da minha vida. Mas é indiscutível que Chesterton leu mal Calvino, confundindo predestinação com determinismo. Tsc-tsc.

Já busquei contribuir para com o desembaraço dos mal-entendidos tentando mais de uma vez explicar calvinismo a católicos sinceros, sem sucesso. Verdade é que uma força bem maior que a ideologia - a fidelidade à Igreja-Mãe - os impede de sequer considerar-me com a atenção devida. No entanto, bastaria apenas que compreendessem o esforço doutrinário de Calvino dentro do que o próprio Chesterton chamou "mistério sagrado do livre-arbítrio" e um dos paradoxos no centro do cristianismo (assim como os dois braços da cruz se encontram). Algo que me permito agora desenvolver em pouquíssimas palavras dessa maneira: o Deus criador do tempo e pai de todo o futuro é, também, o inventor da liberdade humana. Durmam com esse lindo paradoxo; eu o adoro e vivo muito bem com ele. E, se quiserem um resumo menor ainda, lá vai: nele reside todo o calvinismo. Pelo menos, para esta leitora que vos fala. Calvino apenas reforçou em sua teoria o lado menos compreensível para nós, qual seja, o de Deus - a gestação do futuro em Suas mãos.

5 Não deixa de ser curioso que, assim como Calvino hoje, Chesterton continua sendo mal compreendido. Ora é acusado de um superficial frasismo, ora de um dogmatismo mal argumentado, ora de um subjetivismo leviano. Não se trata de nada disso. Leiam, leiam.

6 As observações injustas de Chesterton sobre Calvino não me impedem de gargalhar, até mesmo em público e tomando açaí, ao ler o grande e gordo galhofeiro católico sobre um poeta inglês: "He was damned by John Calvin." Sim, porque o reformado que não sabe rir de si mesmo é um reformado, no mínimo, sem imaginação.
P.S.1 Ao leitor que lamenta uma atualização mais freqüente do blog, um pedido: quando vier aqui e encontrar o mesmo texto lido anteriormente, faça por favor uma pequena e singela oração, assim - "Senhor, permita que a Norma consiga um emprego em que ganhe mais trabalhando menos". Serei muito grata a você se fizer isso! :-)

P.S.2 Este blog ainda não aderiu à reforma ortográfica. Ainda é apegado aos acentos que foram suprimidos e espera fazer o devido luto para, um dia, incorporar tais mudanças a seu idioleto.

05 outubro 2008

Os Beatles e a Perestroika


Comprei um dvd de um show recente do Paul McCartney na Rússia. Comprei e deixei guardadinho para ver quando me desse muita vontade. Gosto de comprar e guardar livros, cds, filmes, para depois redescobri-los com alegria.

Bom, eu não esperava nem de longe o que vi. Para mim, seria um show de Paul McCartney na Rússia, como em qualquer lugar; podia ser na China, na Índia, na Argentina. Mas não. Essa era simplesmente a primeira vez em que um dos Beatles pisava lá, em maio de 2003, com mais de cem mil espectadores na Praça Vermelha. E eu não sabia.

O show é todo entrecortado por testemunhos emocionantes de antigos fãs e impressões de Paul sobre o país. Na época em que os Beatles estouraram em todo o mundo, a Rússia, então União Soviética, vivia no auge do comunismo, de portas trancadas para o Ocidente, considerado portador dos “valores decadentes do capitalismo”. Os discos eram proibidos, ouvidos na clandestinidade. As letras da canções, o comportamento irreverente dos quatro, as opiniões que emitiam diante das câmeras, tudo isso era um “mau modelo para a juventude” segundo o regime. Tudo isso falava de liberdade. Gostar de Beatles tornava-se então um tabu acalentado peles jovens russos com fome de uma vida livre. No vídeo, quem era jovem na época conta que sua geração gastava até o que não tinha para comprar os discos no mercado paralelo, reunia-se em festas, aprendia inglês com as canções, perguntava-se sobre quem era quem nas capas (pois não havia como descobrir), sonhava com aquele universo. E lamentava: o que o mundo todo podia abraçar como um bem comum era algo exterior, inatingível e alienígena, naquele país fechado à força de poderes abusivos que não visavam apenas a ordem exterior, mas sobretudo a subjetividade.

Quando Paul McCartney vai à Rússia livre, com um presidente eleito pelo povo na platéia, torna-se patente o fato como um símbolo. O governo não é mais o censor do prazer, da liberdade, da espontaneidade. Na platéia, jovens de todas as gerações cantam e choram ao ouvir The Fool On The Hill, Maybe I'm Amazed, Let it Be, Hey Jude. O ex-presidente Gorbachev recebe Paul McCartney e reconhece: as canções dos Beatles contribuíram para a Perestroika, preparando o povo russo para a abertura de suas fronteiras. E McCartney se emociona ao cantar “the fool on the hill sees the sun going down” enquanto o sol se põe entre as belíssimas construções em torno da Praça Vermelha.

Enquanto isso, no Brasil, o comunismo ainda é sinônimo de juventude e liberdade. Onde, meu Deus, onde? Se a cada post eu pudesse realizar um desejo, o meu neste aqui seria: que pelo menos os fãs brasileiros dos Beatles pudessem abandonar qualquer pretensão comunista. Que fosse, apenas, por causa da história da Rússia. Já seria um motivo mais que suficiente.
Nesse trecho do dvd, um dos membros daquela geração conta: “Sintonizar Beatles no rádio podia prejudicar você no emprego, na escola, na faculdade; tentar conseguir discos no mercado negro podia dar em prisão; ir a shows onde tocassem músicas dos Beatles, então, gerava conseqüências que nem dava pra imaginar. Vivendo numa situação dessas, você acaba desenvolvendo uma relação muito mais intensa com a música.” Paul McCartney completa: “Era impossível tocar lá. Nossos discos não estavam à venda. Bom, um jeito garantido de tornar algo popular é simplesmente proibir.” Um antigo fã, hoje Ministro da Defesa, comenta: “Não havia discos dos Beatles à venda na Rússia. Só algumas canções em compactos (uma música em cada lado).” E outro mostra o primeiro disco de Paul McCartney liberado para comercialização no país. Era para ser Band On The Run, mas, em vez disso, numa significativa sobreposição, o selo do meio vinha com o logo do Ministério da Cultura. O motivo: Band On The Run havia sido retirada do álbum porque não era "bom" que o ouvinte soviético ouvisse falar de bando, prisão e fuga. Todo contente, o Ministro da Defesa conta que satisfez um de seus grandes desejos – comprar a discografia completa dos Beatles – somente em 1984. Um ano antes da Perestroika.