02 junho 2005

"A fé faz bem à saúde", afirmam cientistas

Mês passado, diversas revistas e sites veicularam reportagens de teor parecido, cuja idéia básica poderia se resumir na afirmação: “Os cientistas já admitem que as práticas espirituais fazem bem à saúde.”

Ainda que adepta de uma fé, estou longe de ver nisso uma boa coisa. A declaração, quase unânime entre cientistas modernos, não vem do nada, pura conclusão de pesquisas objetivamente científicas, como quer parecer; mas é de fato resultado de um longo processo de desmoralização das religiões.

O que está na base desse discurso, acredito, é um olhar científico que se quer autoridade sobre toda e qualquer área do conhecimento humano, como se a ciência fosse "o conhecimento" e o resto precisasse de seu carimbo de autenticidade. Desde que Descartes reduziu o objeto do olhar humano à matéria, a ciência se arvora em autoridade absoluta sobre tudo. Assim, esse tipo de reportagem funciona como um carimbo: a grande mestra Ciência atesta cientificamente que a fé pode ser benéfica sobre a saúde, e por isso todos podem recorrer livremente a ela – é quase um selo de “bom para consumo”, destinado a aplacar o medo daqueles que pretendem lançar mão de tais benefícios.

Este pensamento, por ter quebrado a anti-religiosidade dominante na ciência em geral principalmente nos séculos XVIII e XIX, pode até parecer mais favorável à espiritualidade; porém, se olhado mais de perto, é só um prolongamento de um plano diabólico: depois de proclamar que só é real o tipo de conhecimento que é "provável cientificamente" – ou seja, relacionado à matéria – e de assim subordinar a religião e as ciências humanas à ciência tal como conhecemos hoje, o discurso científico do novo século, ao abrir generosos "parênteses" para afirmar que a saúde das pessoas melhora quando crêem em alguma coisa, reduz drasticamente a fé a uma terapia banal. As perguntas que realmente importam – em que medida as "fés" em questão representam o real, quais são seus argumentos para que clamem ser a verdade – são todas sufocadas por baixo deste "fazer bem" estritamente pessoal, na maioria das vezes superficial e até perigoso, já que nem tudo com que temos prazer é realmente bom para nós. Tudo isso faz parte, creio, do impulso para um apego cada vez maior a necessidades pessoais como um fim em si, promovendo o afrouxamento dos laços coletivos com noções de dever, verdade, real, que apontam para finalidades maiores, para destinos comuns.

Ou seja, “a fé não precisa ser verdadeira, basta fazer bem" – é isso que parecem sustentar os médicos que apregoam tal discurso, afigurando-se assim mais anti-religiosos que os ferrenhos cientistas ateus dos séculos anteriores ao tornarem nula a real fé religiosa, que sempre se relaciona com a honestidade intelectual e a busca sincera da verdade. Eu preferia que continuassem hostilizando a religião, pois pelo menos não a estariam desvirtuando tanto.

Quem crê precisa ficar especialmente atento para isso, pois essa pessoalidade absoluta da fé está presente também nas igrejas, quando a felicidade pessoal (e muitas vezes imediata, e muitas vezes superficial) é mais importante para o cristão que o cumprimento da vontade de Deus. Ao entrarem para a igreja, muitos crentes buscam menos a finalidade de suas vidas em Deus que a realização de seus desejos particulares. E essa capa de fé sufoca a verdadeira fé, que para o cristão verdadeiro implica também o despojamento de prazeres sem grandes significados em prol do que realmente importa, em nossa vida, para Deus – o chamado especial de Deus para nós – , e que precisa ser buscado até morrermos.

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